quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013


A Canção De Embalar


Após finalizar o mestrado de decoração integral de interiores, o Paulo dispunha-se a fazer as malas e voltar para a sua Galiza natal. Já eram mais de sete anos a viver em Itália: os cinco primeiros em Milão, onde tinha feito o curso de design; o resto aqui em Roma, onde deixava muito bons amigos e experiências inesquecíveis.

Ia-se portanto o Paulo, um pouco tristonho, seguro de que ficaria com saudades. Assim partia, rumo à sua terra, cheio de lembranças e também com um ótimo italiano.

Tinha, porém, muitos desejos de reencontrar a sua namorada Carolina, com quem viria a casar no ano a seguir. Estava também ansioso de lhe contar o que tinha visto na Internet. Vendia-se perto de Ourense uma grandíssima quinta, composta de antiga mansão, floresta autóctone e jardins. Tudo por um preço similar ao dum apartamento. Para um casal que adorava a natureza, esta moradia com bons acessos à cidade era perfeita.

Em seguida, o Paulo contactou com o homem que tinha herdado a propriedade, embora não tivesse morado nela jamais.

Lá foram no dia seguinte, depois de o homem lhes dar umas enferrujadas chaves, e de lhes dizer que ele não ia, sem mais explicações. Iludidos e contentes, deixaram a autoestrada para colher uma estrada secundária bastante estreita, que finalmente lhes conduziria ao solar. Aperceberam-se então da espessura do bosque. Milhares de carvalhos, velhíssimos castanheiros e outras árvores, ensombraram de repente o caminho, apesar de serem já as tardes muito compridas, pois estavam em meados de Maio. E assim, mergulhados em pensamentos, chegaram à vedação da quinta.

Erguia-se ali o paço, majestoso e banhado pelo sol da tarde. As plantas do jardim tinham-se apoderado duma parte da fachada. A Carolina e o Paulo ficaram mudos e maravilhados face ao enorme casarão de pedra. Sobretudo, não se explicavam como era possível tudo isso ter um preço tão reduzido.

Trás a pesada porta, entraram num grande hall presidido por umas escadas de mármore com balaústre de madeiras tropicais: “Que beleza!”, disseram em coro. Isto era já suficiente para eles decidirem comprar. Subiram ao primeiro andar para ver o resto da casa. A reforma teria de ser integral, segundo o Paulo.

Um decorador jovem, com ideias vanguardistas como ele, faria que a casa se tornasse uma moradia moderna, com um toque de sobriedade, como uma casa de pedra merece.

No fim do corredor, descobriram o quarto principal, onde teriam dormido provavelmente algum dia os donos. Ficaram sem ar ao contemplar esta esplêndida assoalhada. Duas das três altíssimas janelas com varanda davam para o poente.

A Carolina teve vertigens ao debruçar-se numa delas, já que nesta parte e quase ao pé da casa começava a pendente dum vale. Achou isto muito medonho. Contudo, o Paulo verificou que a paisagem era espetacular. Convidou-a para entrar e admirar aquela mobília de mogno, e as valiosas cortinas de veludo azul escuro. Numa das gavetas da cómoda, a Carolina encontrou uma vestimenta preciosa, feita num tule bordado. Pareceu-lhe um vestido de noiva, mais acabou por ser de berço. O autenticamente bizarro era o estado impecável do tecido e a sua brancura. Concordaram deixar aquele quarto – elegante e luxuoso – intacto. Foram-se, pois embora o local fosse soalheiro, sentiam um frio que trespassava.

Começaram, pois, as obras que se prolongaram até ao mês de novembro. Nos primeiros dias, o Paulo subiu ao sótão, lugar da casa que ainda não tinha visto. Entre os muitos trastes que ali havia, cheios de pó, chamou-lhe a atenção um lindíssimo berço de madeira com peças de marfim incrustadas. Havia também um baú, cujo ferrolho foi impossível abrir. Gostou tanto deles, que pediu aos operários para os porem no quarto grande depois de limpos.

Mandou remover tabiques e fez um grande salão-biblioteca. Conservou as estantes antigas, onde arrumou os seus livros. Colocou uma carpete cinzenta e uns sofás modernos ao calor da lareira. Ao pé deles, o cavalinho de balanço que tinha restaurado.

Não estavam ainda terminadas as obras quando o Paulo decidiu passar a noite. Estava a ameaçar trovoada, e também era muito tarde para voltar à cidade. Foi-se cedo dormir, pois as poucas luzes da casa iam-se por causa da tempestade. Tinha frio e não conseguia adormecer.

Tentava acalmar quando começou a ouvir uma espécie de repique. Pensou que era a chuva, até que, de súbito, distinguiu com clareza o balbuciar dum bebé de poucos meses. O primeiro que pensou foi que alguém, no meio daquela noite infernal, estava a bater à sua porta. –E com uma criança! Foi à janela que dava para a entrada principal. Ninguém... gritou: “Alguém está aí?” Todavia, não houve resposta nenhuma.

Logo após ter fechado a janela, começou de novo a sentir aquele repique. Já estava certo de que algum operário tinha esquecido fechar uma janela. Ia resoluto percorrendo o corredor, quando ouviu outra vez o balbuciar de bebé. Será que há alguém em casa? Pensou...

Com uma lanterna na mão, abriu porta por porta aqueles quartos ainda sem terminar de restaurar. Tropeçou nuns tubos que lá tinha o canalizador. O coração começou a bater com força enquanto se dirigia ao quarto do fundo. Abriu a porta devagar e deu um grito quando viu o baú a se sacudir com uma força que o levantava do chão. Desta vez, o raio iluminou a casa toda. O ferrolho tinha-se movido, mas a cadeia e o aloquete ainda estavam fechados. Deu uma rápida vista de olhos de fora, ajudado pela luz da lanterna. Aquele balbuciar inundava-o todo.

Tinha uma sorte de ataque de pânico, o coitado somente queria escapar dali. Portanto, ainda em pijama, desceu os degraus de dois em dois, pegou o casaco e as chaves, e foi-se a toda a pressa. No carro, de caminho à autoestrada, rodeado daquelas gigantescas árvores, parecia que uma enorme garganta o ia engolir.

No dia a seguir, o primeiro que fez, foi chamar ao serralheiro. Já de manhã, achou que tinha exagerado muito com a sua reação de medo, seguro de que a força do trovão tinha sido a causa das sacudidelas do baú. Estava sugestionado e cansado. Podia ser que tivesse sido um pesadelo. Assim que, tranqüilo, levantou a tampa. Respirou de alívio quando confirmou que lá não havia nada perigoso: livros e cadernos escolares muito antigos, e num canto, sentada, uma boneca grande de porcelana primorosamente vestida – uma preciosidade com uns olhos muito expressivos. Tudo tinha tanta poeira que voltou a fechar a tampa. A Carolina gostaria muito da boneca já limpa. Por outro lado, o Paulo preferiu não lhe contar nada do episódio.

Finalmente, as obras estavam concluídas. Todo o rés-do-chão converteu-se num lugar verdadeiramente acolhedor e moderno, em contraste com o primeiro andar, cuja decoração tinha um ar algo mais clássico. No entanto, ele escolheu um quarto totalmente remodelado, com lareira de design, e uma casa de banho à última moda.

Corria a última semana de novembro, quando, o Paulo e a Carolina, empolgados com a sua casa nova, decidiram festejar a estreia do que seria o seu lar.

Um jantar à luz das velas, e com uma música suave de fundo, seria perfeito. Um dessert delicioso, beijos de amor... Dispunham-se brindar com as taças cheias de champanhe, quando no andar de cima se ouviu uma pessoa a falar. E também uns soluços. A Carolina levantou-se dum solavanco: “Isso, o que foi?”, perguntou ao Paulo que estava paralisado.

Subiam as escadas, quase abraçados. A Carolina a tremer de medo, porque os soluços já eram uns choros inconsoláveis. Ao abrirem a porta do quarto principal e terem aquela visão, sentiram autêntico terror. Uma aragem gélida entrava pela janela aberta. Iluminado pelo resplendor da lua, estava o berço a balançar. Quem lhe teria posto aqueles tules brancos? As gavetas da cómoda estavam abertas, e também o baú.

Um arrepio percorreu-lhes o corpo todo quando ouviram a boneca cantarolar aos pés do berço, algo assim como uma canção de embalar, enquanto a criança chorava aos berros. De vez em quando, dizia com uma voz infantil uma frase, sempre a mesma. Paulo reconheceu a língua alemã: “Kind, du wirst nie groβ werden!” – essa cena gelou-lhes o sangue.

Já tinham a certeza de que naquela casa algo terrível tinha acontecido. Telefonaram para o homem que lhes tinha vendido a casa, mas ele não quis dizer nada. Foram então falar com uns camponeses, cuja quinta não ficava longe do lugar.

Depois de duvidarem, contaram-lhes o que já relatavam os seus avós. Havia quase cem anos, tinha morado nesse solar uma família que tempo atrás emigrara para a Alemanha. Chegaram cá com uma filha de cerca de seis anos. A menina tinha nascido lá. Aos poucos meses de morar na quinta, herança dum tio rico vindo da América, a mulher, que era jovem e linda, teve um filho. O recém-nascido era a alegria da casa, e todos pareciam felizes. Todavia, a menina sentia muitos ciúmes do irmãozinho.

Uma noite, em que os pais tinham convidados, e todos riam e festejavam no salão, a menina foi para o quarto do fundo. Colheu a criança do berço e atirou-a pela janela. Diz-se que se ouviram berros, antes da criança ter rolado pela pendente.

Os psiquiatras dessa altura aconselharam que era urgente a menina ser internada num manicómio. Face a tal tragédia, os pais desesperados, decidiram voltar para a Alemanha. Uma mulher de serviço seria a encarregada de visitar a filha uma vez por mês. Ao fim dum tempo, correu o boato de que se tinha escapado, e que rondava pela quinta. Nunca mais se soube dela, mas, acredita-se que a casa ainda continua assombrada.

O Paulo queimou o berço e o baú com a boneca dentro numa grande fogueira. . Não sabia se uns meses mais tarde, a Carolina, muito impressionada, quereria morar com ele naquela mansão. Ainda ressoava nos ouvidos deles a canção de embalar: “Kind, du wirst nie groβ werden!”: Menino, tu nunca crescerás.

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