quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013


Orfanato

Há alguns dias fui contratado para esse serviço, era uma oportunidade de emprego irrecusável. Eu morava em uma pequena cidade litorânea, sozinho, sem família, esposa ou filhos. Minha fonte de renda nos últimos três anos havia sido de bicos como segurança, era a única coisa que eu possuía relativa experiência. Eu, antes de perder minha esposa para o câncer, trabalhava como policial na capital do estado. Larguei tudo para batalhar ao lado de Priscila contra a maldita doença e, mesmo assim, ela se foi.
Nos últimos meses eu estava com pouquíssimas oportunidades de trabalho, o movimento era tão baixo que mal conseguia comprar a comida da semana. Conforme o mês ia acabando eu me desesperava mais. Foi em meio a esse desespero que me surgiu a oportunidade. Trabalhar como segurança no orfanato municipal que está desativado. Não havia a mínima chance de recusa, o salário era extraordinário, a única condição era morar no serviço durante a semana.
O orfanato desativado era um marco na pequena cidade, um casarão imenso de estilo colonial situado no alto do morro ao lado da praia. Todos na cidade conheciam o local, era quase um cartão postal. Suas paredes brancas refletiam, durante a noite, as luzes emanadas dos faróis. Era uma obra de arte em forma de prédio. A história que sai da boa dos antigos é que o orfanato havia sido desativado na década de 40 devido a um surto de tuberculose que atingiu as crianças. Desde então o prédio está vazio e foi posto a venda alguns anos atrás.
Sem titubear eu topei o serviço, seria a oportunidade perfeita. Além de um bom salário fixo e a oportunidade de alugar um apartamento menor eu iria ocupar minha cabeça no serviço e esquecer um pouco de Priscila, ela já se foi há 3 anos. Seria como um tratamento gratuito contra a depressão e ócio, mal pude esperar. Arrumei minhas malas e preparei tudo, teria que começar de imediato, pois o antigo vigia havia abandonado o serviço, assim o fiz.
Um zelador me mostrou o prédio e os aposentos, a velha casa estava caindo aos pedaços. As paredes todas rabiscadas, tabuas soltas no chão, faltavam telhas, e ainda assim era uma casa linda. As salas eram imensas e meus aposentos eram dignos de um filme de alto orçamento. Eu iria desfrutar minha vida de rei como um segurança do orfanato.
Minha primeira semana de trabalho foi extremamente calma, a única coisa que me atrapalhava era a luz do farol clareando meus aposentos constantemente, amarrei uma toalha preta em minha janela e resolvi o problema. Passeia a semana lendo alguns livros antigos, vendo fotos de minha época feliz e, principalmente, rodando o casarão de cima a baixo. Arrependi-me de ter trazido pouco material para distrair a cabeça, mas a semana foi melhor do que eu esperava.
Confesso que era medonho passar as noites vagando por aquele casarão. Fazia muito frio no alto do morro e as casas antigas sempre parecem ter um tom misterioso. Nunca fui de cair em crenças bobas, não acreditava em assombrações e espíritos. Sempre que, durante a noite, eu ouvia barulhos e ruídos, procurava e encontrava uma explicação lógica. O piso de madeira estralava devido a umidade, as grandes janelas que miravam para o mar criavam correntes de ar, as luzes do farol criavam sombras nos cômodos da casa. Tudo tinha uma explicação.
Foi assim que passei a primeira semana. Dormi pausadamente durante o dia e rondava a casa durante a noite. Esqueci-me de tudo que rondava minha vida fora do orfanato. Na caída do sol de sexta-feira chegou o outro vigia para tomar o posto, era César.
-E ai, novato, passou bem?
-Prazer, meu nome é Pablo. Foi uma semana interessante, nada demais.
-Prazer, César. Não enlouqueceu? A casa fala durante a noite, sabia?
-A natureza fala, César, a casa é só uma casa. – Falei enquanto colocava a mochila nas costas para ir. Saí andando.
-Assim você tenta se convencer.
Essa frase de César foi tema do meu final de semana. Enquanto eu arrumava as coisas para me mudar para um apartamento menor, continuava pensando no que aquele vigia me disse. Poderia ser só besteira, mas eu estava com uma sensação de impotência com relação ao casarão. Para me precaver do tédio resolvi levar mais livros e vários maços de cigarro, ia ter que ocupar minha cabeça. Mente vazia é oficina do orfanato.
Na segunda-feira deixei minha casa com todas as caixas arrumadas, meus vizinhos ficaram com a chave para entregar ao pessoal da mudança. Tomei o rumo para o orfanato, pelo menos lá dentro eu pensava menos em Priscila. Enquanto eu subia os muitos metros de morro ia observando o esplendor do casarão no começo da manhã. Ainda tudo meio escuro e a construção com três grandes janelas ostentava seu poder. Em uma delas pude ver uma silhueta, com certeza César me aguardava.
Cheguei à casa e coloquei minhas coisas no quarto, mas nada de Cesar. Procurei em toda a extensão do casarão, nada. Apesar de incomodado, concluí que ele havia descido quando me avistou chegando, fui ler e me ocupar. As horas passavam lentamente e eu já estava na metade de todos os livros que levei, e só começou a cair a primeira noite. Foi quando tudo piorou.
O farol estava apagado e os barulhos na casa eram cada vez mais nítidos. Ouvia-se o som dos grilos e morcegos ao redor, era uma sinfonia assustadora. Em minha volta em sentia algumas sombras passeando, eram grandes as sombras e não havia luz. Os barulhos no assoalho se assemelhavam a passos, eram cada vez mais pesados. Eu continuava andando durante as longas horas da noite e meu pensamento racional ia dando lugar às paranóias dos populares. Foi então que o avistei, jogado ao chão um velho caderno de capa vermelha onde pude ler o nome César.
Era um velho diário empoeirado, dentro dele havia anotações de inúmeros pensamentos do meu colega de serviço. Sentei-me á beira de um degrau da escada e, iluminando com a lanterna, passei a ler aleatoriamente seu conteúdo. Poesias, desabafos, histórias de família, havia de tudo lá. Quando cheguei às ultimas paginas fui tomado por um arrepio, César estava escrevendo sobre uma noite do serviço, completamente assustado.
“Ela está vindo, e vai me pegar. Os barulhos são mais fortes a cada minuto, a menina dos olhos de mel quer minha alma. Não posso mais correr, só posso rezar por ajuda, ou por uma luz. Esse lugar deveria ser fechado... 15/11/1972”
A data era de exatos 40 anos atrás, aquilo me colocou em desespero. César, o vigia que conheci mal tinha trinta anos de idade, como seria possível? Quando me apoiei para levantar vi ao meu lado, nitidamente, Priscila. Ela estava com uma aparência ótima, mas não sorria. Quando pensei em falar ela me interrompeu:
-Corra, Pablo. Ela quer sua alma.
-Como assim, quem quer? Priscila, como é possível que... – Antes de finalizar a frase eu avistei por cima do ombro do meu amor uma menina de olhos amarelos, cabelos pretos, roupão branco. Ela flutuava em minha direção, corri como nunca.
Eu sequer olhava para trás, consegui escapar pelo fundo da casa e corria em direção à estrada. Eu estava tão perto, faltava tão pouco, só pude sentir uma mão fria me empurrar de lado. Enquanto caí o penhasco em direção ao mar, pude ver a menina dos olhos de caramelo assistir tudo lá de cima. Junto ao meu corpo, incrustados nas rochas, estavam os ossos de uma criança.
Sentei-me na soleira da porta, ou melhor, o que restou de mim sentou. Eu estava perplexo, não entendia, sabia que meu corpo estava nas pedras, mas eu estava ali. Ao meu lado se sentou César, ele sorria e olhava para mim.
-Eu avisei, novato.
-O que é isso?
-Ela estava com fome, quis sua alma e pegou para ela, assim como a minha quarenta anos atrás. A menina que você viu foi a primeira a contrair tuberculose aqui, foi jogada do penhasco pelos funcionários que tinham medo da doença. Agora você pertence ao orfanato, nunca mais sairá daqui. Aproveite para se divertir com o próximo vigia.
Eu passo meus dias aqui agora, observando de fora. Essa semana chegou Carlos para trabalhar. César se apresentou como zelador, eu irei cumprimentá-lo hoje no fim da tarde. Estamos apostando para saber quanto tempo ele dura, Priscila acha que ele não passa da semana que vem.

Às Vezes, Eles Voltam


Sentadas confortavelmente em bancos acolchoados, as cinco garotas discutiam possibilidades, regras específicas da brincadeira nova, sem pensar nas consequências sérias advindas do ato iminente. Um pouco mais cedo, haviam comprado aquele objeto diante delas, montado nos mínimos cuidados possíveis sobre o centro da mesa circular. Oito da noite. Todas, agora, se entreolhavam indecisas. " Vamos mesmo fazer isso, meninas? " Uma unânime confirmação.

O cômodo estava frio, iluminado sensivelmente pelo pequeno bico de luz na parede, acima da penteadeira, janelas fechadas. Silêncio absoluto, aliado à ausência de barulhos externos no caos urbano. Olhos fechados em perfeita sincronia, mergulhadas numa concentração obrigatória, pois iriam jogar com os mortos, esquecidos pelo próprio passado, na busca incessante por contato. Um círculo envolvido pelo ar sombrio, ameaçador e na medida ideal para equilibrar o medo nas expressões individuais. " Devemos invocá-los com uma oração inicial ". A porta estava trancada em duas voltas completas.

A tábua Ouija retangular, plana, exibia caracteres numéricos pintados com nanquim preto. Logo abaixo, concêntricas, letras alfabéticas figuravam num espaço maior, iluminadas, em luzes sortidas de velas coloridas, seguidas por duas simples palavras destacadas por símbolos desconhecidos, piramidais, capazes de ocultar respostas perturbadoras de suas incertezas: Sim e Não. O nome de Deus era, então, proibido mencionar no decorrer do jogo. Questões espirituais, inescusáveis em regra citada. Orações múltiplas fortificariam suas razões, inebriadas por insistentes invocações com a ponta do indicador sobre o fundo da taça emborcada.

Primeira tentativa sem sucesso imediato. Segunda, nenhum fenômeno paranormal visível ainda. Terceira chamada... uma névoa interna no vidro reluzente atestava que havia, aprisionada, uma entidade solitária. O jogo havia começado ante os olhares desconcertados.

- Você é homem ou mulher? - perguntou Isabelle, apreensiva. O objeto moveu rapidamente até a letra H. Era um homem.

- Qual era sua idade quando morreu? - Caminhou aos algarismos 2 e 1.

- 21 anos. Como se chama? - Não houve nenhum movimento por hora. - Vamos, qual o seu nome?

- Por que não mostra seu nome? - Permaneceu imóvel, estático sobre a tábua.

- Por que está aqui? - O copo aproximou-se da borda inferior esquerda. Isabelle estremeceu completamente.

- Por minha causa? - Fechou os olhos, assustada, ao receber tal confirmação.

- Deus do céu, o que ele quer de você, Isa? É um espírito mal... Vamos mandá-lo embora daqui!
Acompanhado pelo tremor da mesa, um barulho inexplicável ecoou pelo quarto, fazendo-as conter um grito de horror. A luz fraca chamuscava repetidamente, num circuito elétrico que fez pipocar a lâmpada fluorescente em explosão de vidros sobre seu rosto. Respingos de sangue nasciam dos pequenos poros formados. A menina chorou.

No mesmo momento, as chamas alaranjadas ondulavam no assopro identificável, uma por uma, aumentando a escuridão interior. A vela enegrecida, permanecia acesa. Névoa dissipada na taça revirada.

Continuavam sentadas, presas por uma força descomunal, próximas, com as mãos dadas em orações de arrependimento posterior. " Ele está solto aqui dentro ". Podiam sentir uma presença desconhecida, sua respiração ofegante, corações acelerados pelo pânico total.

Os passos de um ser invisível riscava o chão, quebrando o silêncio novamente, aproximando da matéria humana em um ímpeto carnal avassalador. Isabelle encolheu-se, cabisbaixa, a combater pelo predomínio corporal . Gritos terríveis por socorro. Ela ainda prevalecia.

De repente, a tábua afastou um pouco, dando lugar ao ser tentando manter a posição de contato, um braço forte segurando suas mãos na tentativa impiedosa. Sentia seu rosto avermelhar dos fortes tapas recebidos, no ato da possessão. Finalmente, petrificou, sucumbida pela segunda personalidade irreconhecível em gestos anormais. Fungava como um animal doentio. As amigas estavam na inércia, apavoradas. " Ela está possuída pelo espírito que invocamos. Tira ele daqui, Deus! "

Levantou a cabeça, exibindo os olhos revirados em expressão terrível, num transe metafísico incomum. A mão direita completamente contorcida, levantada até a altura da boca que pronunciava suas primeiras palavras, graves, como se fosse profanadas por um demônio maligno purgando todos os pecados diante da salvação divina.

- Cuidado com suas crenças, vadias! - disse, apertando o braço da amiga ao lado. A garota desmaiou.

O porta-retrato foi arremessado contra a porta, produzindo um barulho estrondoso. A madeira ainda rangia diante do presente terror.

No canto dos lábios inferiores, um caminho de sangue escorria, caindo sobre a tábua e aumentava quantitativamente. Havia rasgado com os dentes caninos sua própria língua embebida por saliva em reflexos rápidos de visões diabólicas. Novamente, o grito assustador fez apagar a última chama. Isabelle ajoelhou-se no chão, pressionada nos ombros.

Subitamente, voltou ao estado normal, chorando desesperada por ter enfrentado tamanha experiência de possessão. As lágrimas caiam initerruptas, logo sendo amparadas pelas colegas, um pouco aliviadas, depois de minutos de pura agonia. Da boca, o sangue estancava lentamente. Uma dor insuportável que não conseguiria explicar aos pais.

Do outro lado, a garota despertava, confusa. Estava apavorada, com a face ensanguentada. Mãos sobre a boca, trêmula. " Meu Deus, não devíamos ter feito isso ". Estava sem condições de reagir aos impulsos nervosos. Uma porta, agora entreaberta...

Uma simples brincadeira se converteu em algo grave, que poderia ter ocasionado perda de vidas despreparadas, médiuns consignadas pelos seus atos inconsequentes. Mortos rondando no plano real, completas levigações, fenômenos do além, num possível elo de comunicação. Esse seria um segredo escondido por todas. E saíram.

No dia seguinte, conversavam sobre os acontecimentos. Agora, riam da situação enfrentada. Sabiam, no íntimo, que nunca deveriam ter planejado um jogo sem saber lidar com as regras. Isabelle, entretanto, continuava estranha como na noite anterior.

- Isa, o que foi? Algum problema? - perguntou uma delas, logo percebendo seu olhar estranho. Ela não respondeu.

- Isa, está nos ouvindo? - Sem respostas novamente. Apenas tremia exageradamente.

Ao lado, um garoto loiro, lia tranquilamente o livro preto com emblema do pentagrama, intitulado " Filosofias Espirituais ". O vento varria as folhagens em volta do pátio silencioso. Muitos jovens distantes conversavam descontraídos sobre o final de semana. Sexta-feira, 13. Um céu nublado que jamais esqueceriam enquanto existissem. Toque macabro do destino.

Então, o rapaz chegou às últimas linhas do texto. Levantou as sobrancelhas, inculcado com a frase enigmática. Olhou, perdido nos pensamentos, para a menina com bandagens no rosto e sorriu.

- As coisas muitas vezes não são como parecem ser. Cuidado com suas crenças.

A Canção De Embalar


Após finalizar o mestrado de decoração integral de interiores, o Paulo dispunha-se a fazer as malas e voltar para a sua Galiza natal. Já eram mais de sete anos a viver em Itália: os cinco primeiros em Milão, onde tinha feito o curso de design; o resto aqui em Roma, onde deixava muito bons amigos e experiências inesquecíveis.

Ia-se portanto o Paulo, um pouco tristonho, seguro de que ficaria com saudades. Assim partia, rumo à sua terra, cheio de lembranças e também com um ótimo italiano.

Tinha, porém, muitos desejos de reencontrar a sua namorada Carolina, com quem viria a casar no ano a seguir. Estava também ansioso de lhe contar o que tinha visto na Internet. Vendia-se perto de Ourense uma grandíssima quinta, composta de antiga mansão, floresta autóctone e jardins. Tudo por um preço similar ao dum apartamento. Para um casal que adorava a natureza, esta moradia com bons acessos à cidade era perfeita.

Em seguida, o Paulo contactou com o homem que tinha herdado a propriedade, embora não tivesse morado nela jamais.

Lá foram no dia seguinte, depois de o homem lhes dar umas enferrujadas chaves, e de lhes dizer que ele não ia, sem mais explicações. Iludidos e contentes, deixaram a autoestrada para colher uma estrada secundária bastante estreita, que finalmente lhes conduziria ao solar. Aperceberam-se então da espessura do bosque. Milhares de carvalhos, velhíssimos castanheiros e outras árvores, ensombraram de repente o caminho, apesar de serem já as tardes muito compridas, pois estavam em meados de Maio. E assim, mergulhados em pensamentos, chegaram à vedação da quinta.

Erguia-se ali o paço, majestoso e banhado pelo sol da tarde. As plantas do jardim tinham-se apoderado duma parte da fachada. A Carolina e o Paulo ficaram mudos e maravilhados face ao enorme casarão de pedra. Sobretudo, não se explicavam como era possível tudo isso ter um preço tão reduzido.

Trás a pesada porta, entraram num grande hall presidido por umas escadas de mármore com balaústre de madeiras tropicais: “Que beleza!”, disseram em coro. Isto era já suficiente para eles decidirem comprar. Subiram ao primeiro andar para ver o resto da casa. A reforma teria de ser integral, segundo o Paulo.

Um decorador jovem, com ideias vanguardistas como ele, faria que a casa se tornasse uma moradia moderna, com um toque de sobriedade, como uma casa de pedra merece.

No fim do corredor, descobriram o quarto principal, onde teriam dormido provavelmente algum dia os donos. Ficaram sem ar ao contemplar esta esplêndida assoalhada. Duas das três altíssimas janelas com varanda davam para o poente.

A Carolina teve vertigens ao debruçar-se numa delas, já que nesta parte e quase ao pé da casa começava a pendente dum vale. Achou isto muito medonho. Contudo, o Paulo verificou que a paisagem era espetacular. Convidou-a para entrar e admirar aquela mobília de mogno, e as valiosas cortinas de veludo azul escuro. Numa das gavetas da cómoda, a Carolina encontrou uma vestimenta preciosa, feita num tule bordado. Pareceu-lhe um vestido de noiva, mais acabou por ser de berço. O autenticamente bizarro era o estado impecável do tecido e a sua brancura. Concordaram deixar aquele quarto – elegante e luxuoso – intacto. Foram-se, pois embora o local fosse soalheiro, sentiam um frio que trespassava.

Começaram, pois, as obras que se prolongaram até ao mês de novembro. Nos primeiros dias, o Paulo subiu ao sótão, lugar da casa que ainda não tinha visto. Entre os muitos trastes que ali havia, cheios de pó, chamou-lhe a atenção um lindíssimo berço de madeira com peças de marfim incrustadas. Havia também um baú, cujo ferrolho foi impossível abrir. Gostou tanto deles, que pediu aos operários para os porem no quarto grande depois de limpos.

Mandou remover tabiques e fez um grande salão-biblioteca. Conservou as estantes antigas, onde arrumou os seus livros. Colocou uma carpete cinzenta e uns sofás modernos ao calor da lareira. Ao pé deles, o cavalinho de balanço que tinha restaurado.

Não estavam ainda terminadas as obras quando o Paulo decidiu passar a noite. Estava a ameaçar trovoada, e também era muito tarde para voltar à cidade. Foi-se cedo dormir, pois as poucas luzes da casa iam-se por causa da tempestade. Tinha frio e não conseguia adormecer.

Tentava acalmar quando começou a ouvir uma espécie de repique. Pensou que era a chuva, até que, de súbito, distinguiu com clareza o balbuciar dum bebé de poucos meses. O primeiro que pensou foi que alguém, no meio daquela noite infernal, estava a bater à sua porta. –E com uma criança! Foi à janela que dava para a entrada principal. Ninguém... gritou: “Alguém está aí?” Todavia, não houve resposta nenhuma.

Logo após ter fechado a janela, começou de novo a sentir aquele repique. Já estava certo de que algum operário tinha esquecido fechar uma janela. Ia resoluto percorrendo o corredor, quando ouviu outra vez o balbuciar de bebé. Será que há alguém em casa? Pensou...

Com uma lanterna na mão, abriu porta por porta aqueles quartos ainda sem terminar de restaurar. Tropeçou nuns tubos que lá tinha o canalizador. O coração começou a bater com força enquanto se dirigia ao quarto do fundo. Abriu a porta devagar e deu um grito quando viu o baú a se sacudir com uma força que o levantava do chão. Desta vez, o raio iluminou a casa toda. O ferrolho tinha-se movido, mas a cadeia e o aloquete ainda estavam fechados. Deu uma rápida vista de olhos de fora, ajudado pela luz da lanterna. Aquele balbuciar inundava-o todo.

Tinha uma sorte de ataque de pânico, o coitado somente queria escapar dali. Portanto, ainda em pijama, desceu os degraus de dois em dois, pegou o casaco e as chaves, e foi-se a toda a pressa. No carro, de caminho à autoestrada, rodeado daquelas gigantescas árvores, parecia que uma enorme garganta o ia engolir.

No dia a seguir, o primeiro que fez, foi chamar ao serralheiro. Já de manhã, achou que tinha exagerado muito com a sua reação de medo, seguro de que a força do trovão tinha sido a causa das sacudidelas do baú. Estava sugestionado e cansado. Podia ser que tivesse sido um pesadelo. Assim que, tranqüilo, levantou a tampa. Respirou de alívio quando confirmou que lá não havia nada perigoso: livros e cadernos escolares muito antigos, e num canto, sentada, uma boneca grande de porcelana primorosamente vestida – uma preciosidade com uns olhos muito expressivos. Tudo tinha tanta poeira que voltou a fechar a tampa. A Carolina gostaria muito da boneca já limpa. Por outro lado, o Paulo preferiu não lhe contar nada do episódio.

Finalmente, as obras estavam concluídas. Todo o rés-do-chão converteu-se num lugar verdadeiramente acolhedor e moderno, em contraste com o primeiro andar, cuja decoração tinha um ar algo mais clássico. No entanto, ele escolheu um quarto totalmente remodelado, com lareira de design, e uma casa de banho à última moda.

Corria a última semana de novembro, quando, o Paulo e a Carolina, empolgados com a sua casa nova, decidiram festejar a estreia do que seria o seu lar.

Um jantar à luz das velas, e com uma música suave de fundo, seria perfeito. Um dessert delicioso, beijos de amor... Dispunham-se brindar com as taças cheias de champanhe, quando no andar de cima se ouviu uma pessoa a falar. E também uns soluços. A Carolina levantou-se dum solavanco: “Isso, o que foi?”, perguntou ao Paulo que estava paralisado.

Subiam as escadas, quase abraçados. A Carolina a tremer de medo, porque os soluços já eram uns choros inconsoláveis. Ao abrirem a porta do quarto principal e terem aquela visão, sentiram autêntico terror. Uma aragem gélida entrava pela janela aberta. Iluminado pelo resplendor da lua, estava o berço a balançar. Quem lhe teria posto aqueles tules brancos? As gavetas da cómoda estavam abertas, e também o baú.

Um arrepio percorreu-lhes o corpo todo quando ouviram a boneca cantarolar aos pés do berço, algo assim como uma canção de embalar, enquanto a criança chorava aos berros. De vez em quando, dizia com uma voz infantil uma frase, sempre a mesma. Paulo reconheceu a língua alemã: “Kind, du wirst nie groβ werden!” – essa cena gelou-lhes o sangue.

Já tinham a certeza de que naquela casa algo terrível tinha acontecido. Telefonaram para o homem que lhes tinha vendido a casa, mas ele não quis dizer nada. Foram então falar com uns camponeses, cuja quinta não ficava longe do lugar.

Depois de duvidarem, contaram-lhes o que já relatavam os seus avós. Havia quase cem anos, tinha morado nesse solar uma família que tempo atrás emigrara para a Alemanha. Chegaram cá com uma filha de cerca de seis anos. A menina tinha nascido lá. Aos poucos meses de morar na quinta, herança dum tio rico vindo da América, a mulher, que era jovem e linda, teve um filho. O recém-nascido era a alegria da casa, e todos pareciam felizes. Todavia, a menina sentia muitos ciúmes do irmãozinho.

Uma noite, em que os pais tinham convidados, e todos riam e festejavam no salão, a menina foi para o quarto do fundo. Colheu a criança do berço e atirou-a pela janela. Diz-se que se ouviram berros, antes da criança ter rolado pela pendente.

Os psiquiatras dessa altura aconselharam que era urgente a menina ser internada num manicómio. Face a tal tragédia, os pais desesperados, decidiram voltar para a Alemanha. Uma mulher de serviço seria a encarregada de visitar a filha uma vez por mês. Ao fim dum tempo, correu o boato de que se tinha escapado, e que rondava pela quinta. Nunca mais se soube dela, mas, acredita-se que a casa ainda continua assombrada.

O Paulo queimou o berço e o baú com a boneca dentro numa grande fogueira. . Não sabia se uns meses mais tarde, a Carolina, muito impressionada, quereria morar com ele naquela mansão. Ainda ressoava nos ouvidos deles a canção de embalar: “Kind, du wirst nie groβ werden!”: Menino, tu nunca crescerás.

A Morte e a Velhinha do 701


Rodrigo já estava se acostumando a acordar no meio da noite com dor no peito. Vinha acontecendo com bastante freqüência. Apesar disso, pareceu-lhe que, naquela noite, a dor era mais intensa. Acendeu o abajur, pensando em fumar um cigarro. Foi então que viu a figura medonha em pé, a dois passos de sua cama, no mais absoluto silêncio.

Tratava-se de um vulto alto, magro, do qual não pôde distinguir as feições. Vestia uma espécie de manto, com um capuz. O jovem sentou-se na cama, assustado, e perguntou:

– O que é isso? É um assalto?

– Não – respondeu a figura, adiantando-se mais alguns centímetros.

Rodrigo sentiu-se gelar de medo. Quando a criatura avançou, o capuz pendeu para sua nuca. Era uma mulher – ao menos, lembrava vagamente uma mulher –, uma mulher horrível, de rosto acinzentado, com olhos fundos, tão magra que sua pele mal parecia cobrir os ossos da face. À pouca luz do abajur, teve a impressão de ver feridas nas maçãs de seu rosto – ou seriam escaras? –, e de que seu nariz tinha apenas uma chaga apodrecida no lugar onde deveria ser a ponta.

– Eu sou a Morte, Rodrigo – disse ela.

– A Morte? gemeu o jovem. – Então eu estou... morto?...

A Morte esticou o braço e olhou o relógio.

– Ainda não – respondeu. – Mas é questão de minutos.

Rodrigo a olhou, incrédulo.

– Então, eu estou tendo um tratamento VIP – disse, com ar um pouco zombeteiro. – Afinal, garanto que você geralmente não conversa com suas vítimas.

– Às vezes, eu gosto me materializar e de conversar com as pessoas que vão morrer sozinhas – respondeu ela. – Sabe, Rodrigo, eu sou muito só. É bom trocar algumas palavras com alguém, de vez em quando.

Rodrigo sorriu, entre assustado e irreverente. Ainda estava se perguntando como aquela criatura havia entrado ali. Tinha certeza de que, a qualquer momento, aparecer-lhe-iam os cúmplices e o assalto seria anunciado.

– Eu sabia que você não iria tentar sair correndo ou gritando – comentou a Morte. – Eu tenho várias informações sobre você. Sei que é uma pessoa nervosa, especialmente em relação a assuntos de trabalho. Que prefere arriscar a saúde a correr o risco do fracasso profissional. Mas também sei que você nunca foi covarde. Sei que está acima do peso, é totalmente sedentário, só come porcarias e há muito tempo não verifica a taxa de colesterol no sangue. Aliás, seus colegas costumam dizer que o que corre em suas veias não é sangue, mas café. Sei que você tem histórico familiar de mortes precoces por cardiopatias. E sei que você fuma diariamente dois maços de cigarros.

Rodrigo empalideceu.

– Às vezes, são dois e meio – murmurou. – Mas como você sabe?...

A Morte aproximou o rosto do dele. Rodrigo sentiu-lhe o hálito e estremeceu de medo e de repugnância. Era definitivamente o hálito da morte – um cheiro que lembrava o de carne em decomposição. A proximidade daquela criatura com sua pele roubava-lhe o calor, e a frieza que viu em seus olhos parecia começar a arrancar-lhe a alma do corpo. Sentiu necessidade de respirar fundo, e então percebeu como isso estava se tornando mais difícil. Teve a sensação de que seus pulmões não tinham fundo – o ar que aspirava não conseguia preenchê-los...

– Está bem – disse, ofegante. – Talvez você seja mesmo a Morte.

– Você já está começando a acreditar nisso, Rodrigo.

– Adianta eu chamar uma ambulância?

– Não. Você não tem telefone convencional, seu celular está sem bateria, e você não tem tempo suficiente para acordar um vizinho.

– Bem, então, “o que não tem remédio, remediado está”.

A criatura sorriu, mostrando dentes tortos, quebrados e assustadores.

– Você tem coragem, Rodrigo. Mas não imaginei que fosse encarar isso de forma tão pacífica.

– Vai adiantar alguma coisa eu fazer um escândalo? perguntou ele, sentindo a dor em seu peito cada vez mais intensa.

A Morte deu uma gargalhada.

– Eu gosto disso. Normalmente, as pessoas me tratam muito mal, Rodrigo. Tratam-me como se a culpa fosse minha pelo mal que me trouxe até elas. Ou como se a culpa fosse minha pelo modo de vida que levaram, e que encurtou seus anos. Gritam, fazem escarcéu, tentam me atirar objetos. Houve um sujeito que descarregou seu revólver em mim, como se eu mesma fosse capaz de morrer... Mas você está agindo de modo diferente. Confesso que está conquistando a minha simpatia.

A Morte sentou-se na cama e aproximou-se. Rodrigo teve de afastar o rosto, para desviar-se daquele hálito terrível, mas conseguiu permanecer olhando para a figura.

– Quero lhe fazer uma proposta – disse ela.

– Qual?

– Vou-me embora, Rodrigo, e só volto daqui a um ano.

– Daqui a um ano? Não dá para negociar mais algum tempo?

– Não.

Rodrigo teve de rir.

– Bem, nesse caso, quando você voltar, vou esperá-la com um cafezinho – respondeu.

– Calma, Rodrigo. Tem um detalhe. Acontece que eu vim até esse prédio para levar alguém, nesta noite, e não posso voltar de mãos abanando. Mas, se você quiser, eu posso levar outra pessoa em seu lugar.

– Ah, estava bom demais para ser verdade. Muito bem, e quem seria?

– Ainda não sei. Mas, por exemplo, poderia ser a velhinha do apartamento 701...

Rodrigo franziu a testa. A velhinha do 701. Era uma senhora bastante idosa, devia ter cerca de oitenta anos, talvez mais. Sabia muito pouco sobre ela. Parece que era viúva e não tinha filhos. Vivia completamente só. Andava encurvada, arrastava uma perna, devia sofrer muitas dores. Para ela, a morte provavelmente seria um alívio.

Caramba, o que estava pensando? Não podia dispor assim da vida de outro ser humano!...

– Nem pensar – respondeu, encarando a criatura com firmeza.

A Morte levantou-se e o olhou, com um meio-sorriso.

– Você é quem sabe – disse ela.

De repente, Rodrigo sentiu como se alguma coisa estivesse esmagando seu coração. A dor tornou-se incrivelmente intensa, espalhou-se pelo pescoço, pelo ombro e pelo braço, e o jovem percebeu que se tornara impossível respirar. O pânico apoderou-se dele. O desespero o dominou completamente. – Espere! Eu aceito!... – tentou dizer, embora a voz não lhe saísse mais da garganta.

Mas a Morte entendeu o recado.

Imediatamente, a dor passou. Rodrigo caiu sobre a cama, sem saber se estava consciente ou não, e permaneceu de olhos fechados por longos instantes, sem se atrever a abri-los.

Aos poucos, foi percebendo que voltara a respirar. Podia sentir o próprio coração batendo. Abriu os olhos. Nem sinal da figura. Levantou-se, devagar, e acendeu a luz do teto. Olhou em volta. Conferiu as janelas. Estavam fechadas. Percorreu todo o apartamento, confirmando que todas as portas e janelas permaneciam trancadas. Voltou para a cama e enfiou-se embaixo das cobertas.

– Que pesadelo danado! murmurou, tentando voltar a dormir.

No dia seguinte, muito cedo, saiu para o trabalho. Quando o elevador se abriu, levou um susto. Quem o encarava, muito sorridente, do lado de dentro, era a simpática velhinha do apartamento 701.

– Que foi, meu filho? perguntou ela. – Parece que você está assustado!

– Nada, não, dona – respondeu Rodrigo, um pouco atordoado.

– Ah, já sei. – A velhinha piscou um olho. – Você está nervoso porque vai se encontrar com alguém, hoje.

Rodrigo engoliu em seco.

– É... É isso – mentiu.

– Boa sorte, meu filho.

– Obrigado.

Enquanto trabalhava no escritório, naquela manhã, ficou tentando se convencer de que tudo não passara de um pesadelo. Ora, a Morte com um relógio de pulso! Só faltava ela puxar um celular. Ou quem sabe um laptop...

Na metade da manhã, deu-se conta de que deixara em casa alguns importantes documentos, de que precisava com urgência. Pegou seu carro e voltou, apressado. Quando chegou no saguão do prédio onde morava, para seu espanto, viu que havia uma ambulância estacionada diante da porta. Entrou, assustado, e logo percebeu um clima de comoção. Um casal chorava, abraçado, e era consolado por algumas pessoas. Rodrigo os conhecia de vista, eram os Martins, uns vizinhos do apartamento 503. Aproximou-se do porteiro e cochichou-lhe:

– O que houve, Zé?

– Ah, Seu Rodrigo, uma coisa horrível. Sabe o filhinho dos Martins? Aquele menininho arteiro, de cinco anos? Morreu durante a noite.

Rodrigo sentiu um arrepio atravessar-lhe todo o corpo.

– O quê? perguntou, assustado. – Como?

– Não se sabe direito como. Eu mesmo fui ver, Seu Rodrigo. A mãe entrou no quarto, agora há pouco, e o filho não se mexia. Ela gritou, eu fui lá, e resolvi chamar a ambulância. Mas não vai adiantar, Seu Rodrigo. O garoto já está rígido e gelado... Foi durante a noite.

Rodrigo apoiou-se no balcão, sentindo-se a ponto de desfalecer.

– A desgraçada... – murmurou, levando uma das mãos à cabeça, em desespero. – A desgraçada não levou a velhinha... A desgraçada levou uma criança!...

– Como, Seu Rodrigo?

Rodrigo o olhou, pálido.

– Nada... Nada – disse, num fio de voz.

Durante os dias que se sucederam, Rodrigo sentia o peso da culpa esmagá-lo. Não se perdoava pela escolha que tinha feito. E não se atrevia a contar para quem quer que fosse, muito menos para um psiquiatra, que, com certeza, mandaria interná-lo num hospício. Mas sabia, sabia muito bem, que trocara sua vida pela de uma criança, uma criança cheia de saúde e de alegria, que simplesmente morrera, sem que se conseguisse ao menos descobrir do quê. E também o aterrorizava a idéia de que, daí a um ano, a morte viria buscá-lo, e levá-lo para um julgamento onde aquilo seria levado em consideração...

Parou de fumar. Nos primeiro mês, foi horrível, mas resistiu. Também parou de tomar café. Começou um regime. Fez vários exames de saúde. Diminuiu o colesterol. Perdeu peso. Em alguns meses, emagrecera vinte quilos. Tornara-se mais gentil, mais cortês, mais amigo de todos, passara a trabalhar de forma mais serena e organizada, a fazer caminhadas pelo parque, e a se dedicar a um trabalho social num abrigo para crianças pobres, nas horas vagas.

Foi justamente nesse abrigo que ficou conhecendo melhor a velhinha do 701. Há muito tempo era sua vizinha. Mas Rodrigo mal a conhecia. Nunca haviam trocado mais do que algumas palavras no elevador. O que Rodrigo não sabia era que aquela senhora simpática, octogenária, que realmente carregava as dores de um reumatismo, e cuja osteoporose já causara uma fratura numa perna que não consolidara direito, ainda ia, diariamente, ao abrigo de crianças, onde lhes contava histórias, costurava suas roupas e lhes fazia doces. Era uma velhinha encantadora, especialmente por seu jeitinho moleque quando ela piscava um olho, para dar uma idéia de cumplicidade, o que fazia com bastante freqüência. Rodrigo sentia-se absolutamente arrasado quando pensava em como havia aceitado a idéia de matá-la em seu lugar.

À medida em que se aproximava a data fatídica, Rodrigo ia-se sentindo cada vez mais angustiado. No dia em que se completava um ano da visita, Rodrigo saiu mais cedo do trabalho e foi caminhar no parque. Contemplou as árvores e ouviu a música dos pássaros ao entardecer. Procurou um prédio alto e assistiu o pôr-do-sol. Tudo lhe parecia lindo, lindo como nunca percebera enquanto tivera todas aquelas coisas à sua disposição. Agora, era a última vez que as admirava.

Chegou em casa e sentou-se, em expectativa. Não sabia a que horas a criatura viria buscá-lo. Também não imaginava de que forma ela iria entrar no apartamento. Por isso, quando ouviu baterem na porta, avançou para ela, sentindo a raiva acumulada por um ano aquecer-lhe o sangue, prometendo-se que, antes de morrer, iria dizer àquele monstro tudo o que pensava. Escancarou a porta e disse, em voz bem alta:

– Entre, desgraçada!

A velhinha do 701 o contemplou com um susto e encolheu-se. Rodrigo ficou vermelho.

– Desculpe, Dona Maria – disse. – Eu não sabia que era a senhora! Eu estava esperando outra... Pessoa...

A velhinha riu.

– Ora, meu filho, não quero atrapalhar o seu encontro. Só vim ver como você estava. Você me pareceu tão abatido, hoje...

Rodrigo suspirou.

– Dona Maria... Eu mal posso encarar a senhora...

– Vamos, meu filho. Acho que você precisa muito conversar com alguém.

Rodrigo a levou até a sala. De repente, sentiu que precisava lhe contar tudo. Sentiu que precisava de seu perdão. Relatou-lhe todo o ocorrido, sem omitir nenhum detalhe. A velhinha o ouvia, atenta. Quando terminou, Rodrigo tinha lágrimas nos olhos.

A velhinha o encarou com seriedade.

– Isso foi muito grave – disse ela.

– Foi horrível – respondeu o jovem. – Eu matei uma criança.

– Bem, isso você também não tinha como adivinhar, meu filho.

– Mas ela também não me deu certeza de que seria a senhora – quando se deu conta do que dissera, corou ainda mais e baixou os olhos.

A velhinha suspirou.

– Peça perdão a Deus, meu filho. Sabe – tomou-lhe as mãos –, todo mundo comete erros, especialmente em situações extremas como aquela em que você se encontrava. Peça perdão, em nome de Cristo, e tenho certeza de que você vai se sentir melhor.

– E a senhora, pode me perdoar antes que...?

A velhinha sorriu.

– Tenho certeza de que você ainda vai viver muito tempo. E sei que vai ser muito feliz. – Piscou um olho. – Sempre se pode dar um jeito nas coisas, meu filho. Nunca se esqueça disso. Rodrigo agradeceu. Ela ainda ficou com ele por algum tempo. Depois, voltou para seu apartamento. Já era aproximadamente meia-noite. Rodrigo não se despira e não se deitara. Permanecia na sala, em silêncio. Sabia que não adiantava tentar dormir.

Finalmente, sentiu uma mão gelada pousar em seu ombro. Levantou-se e encarou a figura, ainda mais medonha do que antes.

– Desgraçada! disse. – Como você se atreveu a matar uma criança?

A Morte deu uma gargalhada.

– Você não lê os jornais? perguntou. – Não assiste televisão? Eu faço isso todos os dias! A propósito, onde está o café que você me prometeu?

– Eu não bebo mais café.

– Eu sei. Mas um pouquinho diariamente não lhe faria mal. – Olhou-o de cima a baixo. – Você ficou bonito, assim, mais magro...

Rodrigo olhou-a com repulsa, mas firme.

– Chega de conversa – disse. – Faça logo o que veio fazer.

A Morte sorriu, com malícia.

– Ah, mas eu não vim buscar você, Rodrigo.

– Como? espantou-se o jovem.

– Eu disse que eu voltava em um ano, mas não disse que seria para buscar você. Aliás, tenho que lhe dar os parabéns. Você adotou um estilo de vida bastante saudável. Como todos os sinais daquele enfarte desapareceram quando eu levei a criança do 503, eu teria de apelar para uma “causa desconhecida” se quisesse matá-lo. E geralmente eu não gosto de fazer isso. Não tem muita graça para mim.

– Então, o que raios você veio fazer aqui?

A Morte aproximou-se dele. Rodrigo pôde sentir-lhe novamente o hálito terrível.

– Desta vez – disse ela –, eu vim para buscar a velhinha do apartamento 701.

Rodrigo indignou-se. Sentiu a raiva percorrê-lo como se fosse uma descarga elétrica.

– Ah, não – disse. – Deixe ela em paz. Ela ajuda as pessoas!

– Isso não me interessa, Rodrigo. Isso nunca me interessou.

– Pois bem. Há um ano, era para ter sido eu, não era? Pois então, que seja eu agora. Leve-me no lugar dela!

A figura o encarou, com olhos penetrantes.

– Tem certeza? perguntou. – Você ainda pode ter muitos anos de vida pela frente.

– E também pode ser que você esteja me esperando na próxima esquina – respondeu ele, resoluto. – Não caio mais nos seus truques. Vamos, leve-me de uma vez!

A morte suspirou e deu um meio-sorriso.
– Está bem – disse ela.

Rodrigo desabou no sofá e fechou os olhos. Não sabia exatamente o que esperar. Mas nada aconteceu. Após alguns instantes, abriu os olhos. A figura desaparecera.

Súbito, lembrou-se da velhinha e sentiu uma onda de terror. Levantou-se, voando para o corredor do prédio. Chamou o elevador, mas não agüentou esperar que chegasse. Subiu os três lances de escada aos pulos. Bateu na porta número 701 até esfolar os nós dos dedos. Não vinha qualquer barulho do interior do apartamento.

Desesperado, pegou o telefone celular e chamou a polícia. Logo, dois guardas apareceram, arrombaram a porta e entraram. Rodrigo entrou atrás deles. Imediatamente, enxergou o cadáver, tombado no meio da sala.

– Ah, meu Deus!... murmurou, sem se atrever a aproximar-se.

Os guardas correram até o corpo e o examinaram.

– É, ela está morta – ouviu um deles dizer.

O outro fez uma careta.

– Nunca vi uma coisa assim – comentou. – Espero que os caras da funerária consigam dar um jeito nisso. Está muito, muito bizarro.

– É, está mesmo – concordou o primeiro.

Rodrigo aproximou-se, intrigado.

Então, percebeu que a velhinha tinha um dos olhos fechado, e o outro aberto.

– Ela... Ela está piscando para mim!... disse.

De repente, compreendeu. A velhinha do 701 havia morrido sozinha. Também conversara com a Morte. E com certeza pedira a esta que lhe desse uma chance de se mostrar arrependido...

– Ah, não – cochichou um dos guardas. – Mais um esquizofrênico.

– Acho que não – respondeu-lhe o colega. – Mas acho que era muito amigo dela.

Rodrigo ajoelhou-se ao lado do corpo e afagou-lhe o rosto, com carinho, sentindo um alívio que há muito, muito tempo não experimentava.

O Espelho de Clara Nashville


Campainha, susto, porta aberta, foco no chão, pacote vermelho com ares natalinos...

Esta seqüência desorientou de vez a estranha e ilusória vida de Clara Nashville. Sim, a maior, mais bela, mais talentosa, fútil e mais idolatrada das atrizes contemporâneas. Quando conversava consigo própria ela se apelidava de Nash, mas era seu apelido secreto. Pessoa alguma sabia dele, nem os mais íntimos... Nem os verdadeiros amigos.

Quando viu a caixa minuciosamente embrulhada refletindo a luz natural daquele dia de verão largada em sua porta, deixou escapar um sussurro típico de quem costuma conversar com o espelho:

- Nash, alguém lembrou de você neste natal!

Ainda com o peito pulsando numa batida além do normal, tratou de abrir aquele embrulho sem a menor preocupação em preservar o papel. A caixa não era pequena e a tampa não estava bem colocada... Bastou um toque de sua mão e a caixa se abriu, sem esforço e sem revelar algo de bom... Foi difícil de acreditar, quase impossível de absorver a informação, precisou puxar o dedo indicador com muita força para crer que estava acordada.

Se com o toque da campainha sua pulsação gerou aquele desagradável aperto no peito, agora este incômodo havia tomado proporções insuportáveis...

O conteúdo do belo embrulho não era uma bugiganga natalina qualquer, nem algum cacareco comprado no mundo eletrônico virtual, muito menos um mimo enviado por um querido fã ou parente distante.

Clara Nashville estava lá, estática, olhando para sua própria cabeça embalsamada, cortada com requintes de crueldade, muito mal colocada no interior da caixa!!! Pensou ser uma brincadeira de mau gosto, mas não era. Não poderia ser.

- Nash, como alguém recebe a própria cabeça dentro de uma caixa no Natal?

Falou exatamente desta forma, para si própria, com pouca força e com mínimos movimentos nos lábios, caminhando em direção à geladeira para beber uns goles de vodka gelada.

Foi recapitulando sua rotina nos dois últimos dias e percebeu que todos os vizinhos não a cumprimentavam mais... Percebeu que nenhum fã a reconhecia na loja de conveniência nem no shopping... Lembrou que, ao fazer compras, errou o código do cartão de débito... Nada disto fazia sentido...

Não. Com certeza não estava morta, podia sentir o batimento do coração aumentando insistentemente. Só a vodka poderia ser a salvação.

- Cabeça... Caixa... Eu... Eu?

Abriu a geladeira e a incógnita (se houvesse uma escala seria a mais absurda delas) começou a competir com a razão. Dentro dos potes de picles estavam seus lindos olhos verdes, os mesmos que faziam a multidão sofrer de paixão nos cinemas. Dentro do congelador brilhava uma das mãos ainda exibindo o anel de esmeraldas... A outra estava retalhada e distribuída pelos pratos congelados para o natal e num cúmulo desnecessário, alguns dedos caíram no chão sem que ela dessa conta. Mas para ela, o pior de tudo foi a garrafa de vodka...

- Completamente vazia? Faz dias que não bebo!Como vazia? Natal sem vodka gelada é impossível de ser bom. Vou vestir a mesma roupa com que apareço naquele comercial de desodorante e, se der sorte, chego à loja para as compras antes que seja tarde. Compro qualquer uma bebida que estiver na prateleira, dou uns autógrafos e tal... Preciso de uns goles...Cabeça...na caixa.Como pode? Será que o pessoal do teatro vem para a ceia?

Já nas ruas, certa de ser reconhecida, frustrou-se ao perceber que um Papai Noel tosco, na porta da loja de importados chineses, fazia mais sucesso do que ela. Inconformada, Clara esbarrou violentamente no velho de barbas brancas e entrou na casa de inutilidades... Todos olharam para a roupa dela com espanto. Para a roupa, mas não para ela... Começaram a rir, como se houvesse uma caricatura ali, todos perceberam que alguém estava desequilibrada.

Este alguém sussurrou como sempre...

- Nash, o que eles pensam que são... Sou Clara Nashville! E eles, quem são?

Neste momento olhou para uns espelhos mal emoldurados com a etiqueta azul revelando o preço de R$6,66 a embalagem com duas unidades. No reflexo, um presente torturante invadiu mais uma vez sua mente.

-Espera lá! Aquele no espelho não é meu rosto! Não são meus olhos, não é minha boca... Esta roupa não é minha, estes movimentos não são meus...Meu Deus!!! Não sou eu no espelho!!! Não sou Clara Nashville, sou... Sou... Sou a empregada dela! Sou a empregada....

Clara Nashville havia faltado três dias seguidos no ensaio da peça que estrearia no próximo ano. Barbaramente assassinada pela sua empregada e confidente, teve sua cabeça enviada por intermédio de um mensageiro para sua própria casa no dia de Natal. Georgina, a empregada assassina, apodrece hoje no cadeião da cidade. Sua maior diversão é, nos dias de Natal, olhar através das grades e ver o helicóptero do Papai Noel descendo na maior favela da região enquanto os miseráveis apontam para o ar.

- Nash, será que alguém vai lembrar de você neste natal?

du Zambetti
Foto: O Espelho de Clara Nashville

~Michael Myers

Campainha, susto, porta aberta, foco no chão, pacote vermelho com ares natalinos...

Esta seqüência desorientou de vez a estranha e ilusória vida de Clara Nashville. Sim, a maior, mais bela, mais talentosa, fútil e mais idolatrada das atrizes contemporâneas. Quando conversava consigo própria ela se apelidava de Nash, mas era seu apelido secreto. Pessoa alguma sabia dele, nem os mais íntimos... Nem os verdadeiros amigos.

Quando viu a caixa minuciosamente embrulhada refletindo a luz natural daquele dia de verão largada em sua porta, deixou escapar um sussurro típico de quem costuma conversar com o espelho:

- Nash, alguém lembrou de você neste natal!

Ainda com o peito pulsando numa batida além do normal, tratou de abrir aquele embrulho sem a menor preocupação em preservar o papel. A caixa não era pequena e a tampa não estava bem colocada... Bastou um toque de sua mão e a caixa se abriu, sem esforço e sem revelar algo de bom... Foi difícil de acreditar, quase impossível de absorver a informação, precisou puxar o dedo indicador com muita força para crer que estava acordada.

Se com o toque da campainha sua pulsação gerou aquele desagradável aperto no peito, agora este incômodo havia tomado proporções insuportáveis...

O conteúdo do belo embrulho não era uma bugiganga natalina qualquer, nem algum cacareco comprado no mundo eletrônico virtual, muito menos um mimo enviado por um querido fã ou parente distante.

Clara Nashville estava lá, estática, olhando para sua própria cabeça embalsamada, cortada com requintes de crueldade, muito mal colocada no interior da caixa!!! Pensou ser uma brincadeira de mau gosto, mas não era. Não poderia ser.

- Nash, como alguém recebe a própria cabeça dentro de uma caixa no Natal?

Falou exatamente desta forma, para si própria, com pouca força e com mínimos movimentos nos lábios, caminhando em direção à geladeira para beber uns goles de vodka gelada.

Foi recapitulando sua rotina nos dois últimos dias e percebeu que todos os vizinhos não a cumprimentavam mais... Percebeu que nenhum fã a reconhecia na loja de conveniência nem no shopping... Lembrou que, ao fazer compras, errou o código do cartão de débito... Nada disto fazia sentido...

Não. Com certeza não estava morta, podia sentir o batimento do coração aumentando insistentemente. Só a vodka poderia ser a salvação.

- Cabeça... Caixa... Eu... Eu?

Abriu a geladeira e a incógnita (se houvesse uma escala seria a mais absurda delas) começou a competir com a razão. Dentro dos potes de picles estavam seus lindos olhos verdes, os mesmos que faziam a multidão sofrer de paixão nos cinemas. Dentro do congelador brilhava uma das mãos ainda exibindo o anel de esmeraldas... A outra estava retalhada e distribuída pelos pratos congelados para o natal e num cúmulo desnecessário, alguns dedos caíram no chão sem que ela dessa conta. Mas para ela, o pior de tudo foi a garrafa de vodka...

- Completamente vazia? Faz dias que não bebo!Como vazia? Natal sem vodka gelada é impossível de ser bom. Vou vestir a mesma roupa com que apareço naquele comercial de desodorante e, se der sorte, chego à loja para as compras antes que seja tarde. Compro qualquer uma bebida que estiver na prateleira, dou uns autógrafos e tal... Preciso de uns goles...Cabeça...na caixa.Como pode? Será que o pessoal do teatro vem para a ceia?

Já nas ruas, certa de ser reconhecida, frustrou-se ao perceber que um Papai Noel tosco, na porta da loja de importados chineses, fazia mais sucesso do que ela. Inconformada, Clara esbarrou violentamente no velho de barbas brancas e entrou na casa de inutilidades... Todos olharam para a roupa dela com espanto. Para a roupa, mas não para ela... Começaram a rir, como se houvesse uma caricatura ali, todos perceberam que alguém estava desequilibrada.

Este alguém sussurrou como sempre...

- Nash, o que eles pensam que são... Sou Clara Nashville! E eles, quem são?

Neste momento olhou para uns espelhos mal emoldurados com a etiqueta azul revelando o preço de R$6,66 a embalagem com duas unidades. No reflexo, um presente torturante invadiu mais uma vez sua mente.

-Espera lá! Aquele no espelho não é meu rosto! Não são meus olhos, não é minha boca... Esta roupa não é minha, estes movimentos não são meus...Meu Deus!!! Não sou eu no espelho!!! Não sou Clara Nashville, sou... Sou... Sou a empregada dela! Sou a empregada....

Clara Nashville havia faltado três dias seguidos no ensaio da peça que estrearia no próximo ano. Barbaramente assassinada pela sua empregada e confidente, teve sua cabeça enviada por intermédio de um mensageiro para sua própria casa no dia de Natal. Georgina, a empregada assassina, apodrece hoje no cadeião da cidade. Sua maior diversão é, nos dias de Natal, olhar através das grades e ver o helicóptero do Papai Noel descendo na maior favela da região enquanto os miseráveis apontam para o ar.

- Nash, será que alguém vai lembrar de você neste natal? 

Por Edu Zambetti